quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Essa é uma cena de vida nordestina em São Paulo.

Cerca de 12% da população da cidade de São Paulo é composta por migrantes nordestinos. Desse percentual, pouco mais de 70% desempenha funções braçais de baixa remuneração, trabalhos domésticos, vivem do comércio informal ou estão desempregados. Mesmo submetidos aos mais subalternos postos de trabalho, os migrantes não estão livres do desemprego, que entre eles é 10% maior do que em relação aos demais paulistanos. Além de preencher o subemprego, os migrantes nordestinos e seus descendentes também figuram como os principais moradores das periferias da cidade.
Esses dados da Fundação Seade e do IBGE revelam as péssimas condições de vida a que os migrantes são submetidos e também o quanto as elites econômicas se beneficiam de seu êxodo. Não apenas os empresários e industriais paulistas, como também os grandes latifundiários do nordeste e os políticos, cada vez menos comprometidos com o desenvolvimento da região.
Enquanto uns se beneficiam, a cidade que comemora 452 anos cresce. Não o crescimento desejável, com o aumento de renda e emprego, mas um crescimento demográfico e espacial sem planejamento, com o aumento da periferia. Será que o pseudopacifismo e a submissão que os governos autoritários impuseram ao povo brasileiro conseguirão manter inativa ainda por muito tempo essa bomba social? Ou conheceremos em breve os efeitos de tamanha exclusão, a exemplo dos distúrbios sociais na periferia de Paris?


ESSAS E MUINTAS OUTRAS PERGUNTAS,SÓ O TEMPO PODERAR NÓS RESPONDER.

ESQUECIMENTO.
Quase todos os grupos sociais que ajudaram a construir São Paulo, como os italianos, portugueses, japoneses, árabes, judeus e muçulmanos e espanhóis, por exemplo, encontraram na metrópole espaço para enaltecerem suas origens e estudá-las. Museus, escolas ou bairros inteiros serviram de palco para representações de povos heróicos, sofridos, trabalhadores e de extrema importância e influência cultural para os paulistanos. Para os nordestinos, que somam com seus descendentes mais que o dobro da quantidade de representantes de origem estrangeira, restou o esquecimento e o preconceito dos que se julgam filhos mais legítimos dessa terra.
A forma de tratamento que lhes cabe demonstra que quem veio do nordeste parece incomodar a cidade. “Baiano”, “paraíba”, “ceará”,“cabeça chata”, “pau-de-arara”... Não são raros os termos usados para se referir a essa gente como feia, atrasada, brega e inferior. Essa imagem, que parece nunca ser retocada pelo tempo, encobre um dos mais significativos e atuais fenômenos sociais brasileiros, mas não impediu que São Paulo se tornasse de fato a capital mais nordestina do País. Traços da cultura nordestina estão presentes na culinária, nas danças, festas, até em algumas expressões e ditos populares. Falta apenas que essa herança cultural seja devidamente preservada e estudada.
Sem história
A trajetória das pessoas na região do semi-árido é pensada com uma quase paralisia histórica: nada muda, são sempre as mesmas abordagens e propostas recorrentes. É freqüente encontrarmos nos discursos de historiadores afirmações como “O problema da seca e das migrações no sertão nordestino é histórico”. Nesse contexto, “ser histórico” é aquilo que sempre ocorreu e que não tem solução, isto é, tem um sentido de permanência. Para a historiadora Isabel Guillen, a banalização e a invisibilidade acabam por transformar o semi-árido em uma região aparentemente sem história. “Quando afirmam que a pobreza e a migração são históricas, parece-me que lhes dispensam o mesmo tratamento dado às secas, ou seja, busca-se naturalizar um dado que é social”, comenta Guillen.
A falta de interesse dos intelectuais só começou a diminuir após a década de 1970, quarenta anos depois da intensificação do processo de migração. E ainda hoje, os estudos realizados sobre o assunto são escassos. Fotos, objetos, depoimentos, documentos, obras de arte, artesanatos e tudo aquilo que costuma fazer parte de estudos e acervos de museus, deixaram de ser recolhidos e podem ter se perdido para sempre. O desinteresse de universidades e do poder público pelo resgate e a discussão dessa história vai ao encontro dos que querem manter as causas do êxodo sempre vivas – a concentração de terras, a falta de planejamento e políticas de desenvolvimento, e a existência de mão-de-obra sempre barata, graças ao desemprego abundante.
São Paulo, que perdeu há muito tempo a imagem de “Eldorado do trabalho”, ainda atrai brasileiros que querem mudar de vida. Mesmo sem figurar como uma real alternativa à vida pobre do nordeste, a falta de opções faz da cidade um destino tradicional e, de certa forma, familiar, já que carrega um pouco da cultura nordestina e de outros cantos do Brasil.

Em sua tese de doutorado na USP, “Caminhos cruzados – a migração para São Paulo e os dilemas da construção do Brasil moderno”, o pesquisador Odair Paiva demonstra como a visão de migração como um processo econômico, social e climático natural favoreceu as elites nordestinas detentoras de terras e meios de produção, assim como as oligarquias do Sul.
“A dupla construção da idéia de um nordeste do atraso ganha força nos anos de 1930, já que a base social promotora da mesma – elites nordestinas e interesses de grupos agrários e industriais em São Paulo – encontra nela um elemento importante na defesa de seus interesses”, afirma Paiva.
Para o pesquisador, as causas da migração não estão diretamente ligadas à seca, mas sim à predominância dos latifúndios. A concentração fundiária como elemento explicativo para o êxodo também é o que aponta pesquisa realizada em 1952 pela Fundação Mauá, no Rio de Janeiro. Nesse estudo, são confrontados o latifúndio improdutivo e o minifúndio inviável para abastecer as famílias dos trabalhadores, restando, como alternativa, o êxodo rural.
Observando o perfil do migrante, fica claro que a seca não é a raiz do processo de deslocamento. Dos que chegaram a São Paulo entre as décadas de 1930 e 1970, 42% vinham do interior do estado, de Minas Gerais e do norte do Paraná. Dos 58% vindos do nordeste, apenas 15% saiam de regiões do semi-árido. Não era, portanto, do clima que a maior parte dessas pessoas fugiam, mas de um fator comum a todas essas regiões: o desemprego no campo notadamente causado pela predominância do latifúndio improdutivo.
A seca aumenta a miséria e colabora para o êxodo. Mas acreditar que ela seria o principal elemento explicativo da migração nordestina seria transferir para a natureza um problema que é político, econômico e social.
Também não se pode esquecer que esse deslocamento populacional não foi totalmente espontâneo, já que as elites que se beneficiaram dele buscaram em diversos momentos promovê-lo. Em sua dissertação de mestrado na USP, o historiador Flávio Venâncio de Luizetto procura evidenciar como a migração era de interesse das oligarquias. “O frágil equilíbrio em que repousava a economia açucareira, tendo, de um lado, uma necessidade de mão-de-obra barata e abundante e, de outro, mantendo os trabalhadores sujeitos a péssimas condições de trabalho e vida... poderia criar situações de tensão perigosas para a estabilidade da ordem, principalmente na época da entressafra, quando o número de desocupados aumentava... A possibilidade de êxodo para o Sul apresentava-se como uma válvula de escape para essas ocasiões de incertezas”.
veja o depoimento de mais uma história de nordestino.
porque migrar ?
uma história distinta e a mesma luta: mudar de vida e perseguir um novo destino em São Paulo.
“A gente vive mais doente do que sadio , trabalha direto , quase não vê os filhos ... Só se trabalha para comer e pagar o aluguel , água e luz .”
UMA DÉCADA - Maria Helenilce (Lena), 40 anos, ajudante de cozinha. Mora em São Paulo há 10 anos.
“Nasci e me criei no Ceará. Minha vida lá era uma vida de nordestino mesmo, de lida na roça. Meus pais sempre foram muito humildes e a gente sempre trabalhou com plantações de legumes. Minha família ainda trabalha lá, meus pais, minha mãe e meus irmãos ainda estão lá. Eles são em oito.
Eu não tinha planos de vim para cá. Primeiro eu me casei, isso aos 22 anos. Eu tive um filho e, cinco anos depois, fiquei viúva. E depois de mais cinco anos, eu conheci outra pessoa, que já morava em São Paulo. Ele foi passear lá e a gente se conheceu. Fiquei lá uns seis meses, daí ele mandou me trazer pra cá. Foi quase sem motivo que eu vim.
Hoje, eu tenho três filhos, um nasceu lá e dois nasceram aqui. Minha filha tem 10 anos, meu filho tem 3 e o outro tem 21.
Eu vim também de uma vida muito pobre. Antes de me casar, sempre trabalhei na roça, até os 22, 25 anos, mais ou menos. Depois, eu comecei a trabalhar com bar, com outras coisas também, mas na época que eu trabalhava com meus pais, era tudo muito difícil. Eu lembro que a gente não ia para lugar nenhum, não tinha diversão nenhuma, só trabalhava. Eu não estudei quase, estudei três anos e meio só. Eu tinha que ir para a roça, ajudar meus pais. Ia às vezes descalça, na terra quente. Eu, mesmo, vim calçar um chinelo, que meu pai mandou fazer, quando já tinha 12 anos. Na época em que eu comecei a estudar, tinha 12 anos.
Aqui, em São Paulo , já morei em Santo Amaro , mas já faz nove anos que eu moro em Ermelino Matarazzo. O norte é lugar muito difícil e eu não pretendo voltar mais. A não ser que... bem, é que o mundo dá muitas voltas, né? Mas eu não pretendo voltar para lá tão cedo, para morar lá, não. Prefiro ficar com as dificuldades daqui, trabalhando e pagando aluguel, do que ficar lá. Lá, não tem emprego. Aqui, eu já tenho uma profissão.
Hoje, eu luto muito para conseguir uma casa, mas nunca deu certo. Já entrei no mutirão, fiquei três anos, quando saiu a casa, a moça me passou para trás e eu fiquei sem nada. Enfrentei, de novo, outro mutirão e uma outra pessoa deu fim em meus papéis e eu caí fora. Entrei em outra, para você ver como eu já lutei. Dessa vez, era lá em Itaquá. Comprei o terreno, paguei mil reais. Só que o terreno está embargado na prefeitura e eu estou sem terreno, nem dinheiro, nem nada. Mas meus planos são, e eu tenho fé em Deus que eu ainda vou conseguir, nem que seja um cômodo para eu morar aqui e não pagar aluguel. Meu sonho é ter uma casa aqui”.

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